O que a proposta quer mudar
Em traços largos, o pacote do Livre empurra a publicidade de apostas para um regime de exceção em vez da regra. Eixos principais:
- Cortes na publicidade que glorifique o jogo, prometa ganhos fáceis ou mire públicos vulneráveis.
Proibição de patrocínios desportivos por casas de apostas, com período de transição.
Fim do uso de figuras públicas e influencers em anúncios de jogo.
Avisos claros de risco em comunicações e produtos.
Autoexclusão mais simples: um pedido abrange todos os sites licenciados.
A proposta sobre raspadinhas em estabelecimentos de saúde não avançou.
Motivação declarada: reduzir a exposição, prevenir dependências e proteger menores e públicos de risco.
1) Saúde pública primeiro.
Há uma minoria com padrões de risco elevados. Menos estímulos publicitários tende a reduzir novas entradas impetuosas e recaídas.
2) Menos glamour e menos ilusões.
Banir “ganha fácil” e remover celebridades corta o efeito halo que normaliza o jogo como estilo de vida.
3) Mensagens de risco funcionam a prazo.
Avisos consistentes criam literacia, sobretudo quando articulados com escolas e saúde.
4) Autoexclusão unificada.
Um botão único para todos os operadores licenciados aumenta a eficácia da proteção.
1) Risco de mercado ilegal.
Se as marcas legais deixam de comunicar, as ilegais ocupam o espaço. Resultado possível: migração para sites sem KYC, sem limites e sem apoio.
2) Impacto no desporto e nos media.
Muitos clubes e modalidades dependem dessas receitas. Um corte abrupto contrai orçamentos e programação. Nos media, menos investimento publicitário reduz capacidade editorial.
3) Paternalismo versus autonomia.
Há quem prefira regulação de conteúdo e horários, educação e fiscalização em vez de proibições amplas.
4) Concorrência e previsibilidade.
Regras voláteis desincentivam investimento em produto responsável. Operadores sérios pedem estabilidade para se diferenciar dos irregulares.
Impacto prático para cada parte envolvida
- Apostadores
Para a maioria dos apostadores ocasionais, as mudanças não devem alterar drasticamente a experiência de jogo. A grande diferença estará na forma como entram em contacto com o produto: menos campanhas agressivas, menos promessas de ganhos rápidos e mais mensagens sobre os riscos e responsabilidades envolvidos.
Isto pode tornar a decisão de apostar mais consciente e deliberada, reduzindo comportamentos impulsivos e ajudando cada pessoa a perceber melhor o que está a fazer com o seu dinheiro. A aposta deixa de ser vendida como “o caminho para mudar de vida” e passa a ser encarada, de forma mais honesta, como entretenimento com risco financeiro real
- Jogadores vulneráveis
Este é o grupo que mais poderá beneficiar. Pessoas que já enfrentam problemas de dependência ou que têm perfis de risco (por exemplo, jovens ou indivíduos em situações económicas difíceis) deixarão de estar expostas a uma parte significativa dos gatilhos publicitários que reforçam hábitos compulsivos.
A simplificação dos mecanismos de autoexclusão também representa um avanço importante, pois facilita o acesso a ferramentas de proteção no momento em que a pessoa decide pedir ajuda. A longo prazo, isto pode traduzir-se numa redução dos casos de jogo problemático e num impacto social e de saúde mais controlado.
- Operadores e casas de apostas
Para as empresas licenciadas, as mudanças terão impacto direto nas estratégias de aquisição e retenção de clientes. Com menos liberdade publicitária e sem figuras públicas a promover marcas, a competição deixará de depender tanto da visibilidade e passará a centrar-se em fatores como qualidade da plataforma, inovação, serviço ao cliente e políticas de jogo responsável. Haverá também pressão adicional para desenvolver ferramentas de proteção mais sofisticadas e processos mais transparentes.
Em contrapartida, as empresas poderão beneficiar de um ambiente de mercado mais credível, com consumidores mais informados e relações de longo prazo baseadas na confiança.
- Clubes e ligas desportivas
As entidades desportivas enfrentarão um dos maiores desafios práticos. Muitas equipas, sobretudo fora da elite, dependem do patrocínio de casas de apostas para sustentar orçamentos, pagar salários e investir em infraestruturas. A proposta prevê um período de transição até 2028, mas mesmo assim será necessário repensar modelos de financiamento e procurar novas fontes de receita.
Por outro lado, há também oportunidades: a limitação de publicidade pode abrir espaço para patrocínios de setores com valores mais alinhados com a responsabilidade social, reforçando a imagem das equipas junto de novos públicos e patrocinadores.
- Estado e regulador
O papel das autoridades ganhará peso. Com regras mais exigentes, será necessário reforçar a fiscalização e monitorizar o cumprimento das novas limitações publicitárias. Isto inclui supervisionar campanhas digitais, redes sociais e acordos comerciais, garantindo que o espírito da lei não é contornado. Além disso, o Estado terá de avaliar constantemente o impacto destas medidas — tanto ao nível da saúde pública como nas receitas fiscais — e ajustar a legislação conforme os resultados.
A médio prazo, esta abordagem pode aumentar a confiança dos consumidores no setor regulado e consolidar um mercado mais sustentável e transparente.
O que aprendemos lá fora
As experiências internacionais mostram um ponto-chave: limitar a publicidade não faz desaparecer o jogo, mas muda a forma como as pessoas entram em contacto com ele.
Em países como Itália, Bélgica ou Espanha, onde foram aplicadas restrições severas, o número de apostadores manteve-se relativamente estável. O que se observou foi um impacto mais direto no tipo de mensagens transmitidas e na forma como o público perceciona as apostas.
Em Portugal, também já se sabe que a popularidade das apostas não começou com a regulação. O que a legislação trouxe foi, acima de tudo, uma mudança no ambiente de consumo, com regras mais claras, maior proteção e uma cultura mais informada em torno do jogo. A proposta do Livre encaixa nesse mesmo raciocínio: não tenta eliminar o mercado, mas sim reduzir o poder da publicidade em moldar comportamentos de risco.
Caminhos para um possível equilíbrio
Mesmo quem critica a proposta concorda que o tema merece atenção. Há formas de encontrar um meio-termo:
Definir regras claras para conteúdo e horários da publicidade, em vez de um corte total.
Focar em transparência e educação, garantindo que os consumidores percebem os riscos antes de jogar.
Reforçar a sinalização oficial e campanhas de literacia, para que o público saiba onde e como apostar com segurança.
Garantir uma transição financeira planeada para clubes e media, evitando ruturas abruptas.
A proposta do Livre não quer acabar com as apostas, mas sim reduzir a pressão publicitária que as rodeia. Pretende criar um ecossistema mais seguro, informado e responsável, onde a decisão de jogar seja tomada com consciência e não por impulso.
Do outro lado, há preocupações legítimas sobre liberdade, impacto económico e eficácia das medidas. Encontrar o ponto de equilíbrio entre proteção e autonomia será o verdadeiro desafio dos próximos meses.
Seja qual for o desfecho, o debate já trouxe algo positivo: uma reflexão necessária sobre o papel da publicidade no setor e sobre o que significa jogar de forma segura no século XXI.
